segunda-feira, 19 de julho de 2010

O auge e a decadência do futebol húngaro - Parte 2

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 A Copa do Mundo na Suíça

O primeiro jogo da Hungria na Copa de 1954 foi contra a Coreia do Sul, que fazia sua estreia em Copas. O time coreano não era muito conhecido, mas todos esperavam que a Hungria vencesse com facilidade. O que não esperavam é que fosse com tanta facilidade! Com um gol de Lantos, um de Czibor, dois de Puskás, dois de Palotás e três de Kocsis, estava estabelecida a maior goleada de uma Copa de Mundo até o momento, 9x0.

Na segunda partida, o adversário era a Alemanha. Sepp Herberger, o técnico alemão, tomou uma decisão inusitada: sabendo que seu time tinha poucas chances de vencer a Hungria e que seria um jogo muito desgastante, ele resolveu poupar alguns titulares e entrou em campo com metade do time reserva. Os húngaros, como esperado, deram mais um show. Aos 21 do primeiro tempo, já estava 3x0. Com quatro gols de Kocsis, um de Puskás, dois de Hidegkuti e um de József Tóth, a partida acabou 8x3. Pfaff, Rahn e Herrmann descontaram para os alemães. Mas a Hungria teve um problema grave nesse jogo: o capitão Ferenc Puskás sofreu uma violenta entrada por trás de Werner Liebrich e torceu o tornozelo. Devido à lesão, Puskás acabou ficando de fora nos dois jogos seguintes.

Pelo bizarro regulamento da Copa de 54, cada time jogava só duas vezes na primeira fase. Mas como Alemanha e Turquia estavam empatados com uma vitória e uma derrota, houve um jogo desempate entre eles. Foi nisso que apostou o técnico alemão ao decidir não enfrentar a Hungria com força total. Deu certo, a Alemanha venceu a seleção turca por 7x2 e se classificou.

Um ponto curioso é que os confrontos da fase final eram decididos por sorteio. Logo, não fazia diferença se classificar em primeiro ou segundo no grupo. Tanto que os vencedores de cada grupo caíram na mesma chave (Brasil, Hungria, Uruguai e Inglaterra), enquanto os segundos colocados já tinham um representante garantido na final (Iugoslávia, Alemanha, Áustria ou Suíça).

A Batalha de Berna

O adversário dos húngaros nas quartas de final era o Brasil, atual vice-campeão do mundo e que tinha jogadores como Djalma Santos, Nilton Santos, Julinho e Didi. Diziam até que era a final antecipada. 60.000 pessoas assistiram o jogo no Wankdorf Stadium, em Berna. Foi uma partida tão violenta que acabou recebendo o nome "Batalha de Berna".

Mesmo sem Puskás, a Hungria começou arrasadora. Hidegkuti marcou aos 4 e Kocsis aos 7 do primeiro tempo. O Brasil foi pra cima e diminuiu aos 18, com Djalma Santos cobrando pênalti. Os dois times estavam nervosos e abusavam das faltas duras. O clima não era nada amistoso. Fora do lance, Brandãozinho levou um chute na canela de Hidekguti e revidou com um soco na orelha, quase levando o adversário a nocaute. O juiz nem viu. Nilton Santos e Pinheiro acertaram Tóth ao mesmo tempo em uma dividida, que saiu mancando. Aos 15 do segundo tempo, Pinheiro toca a mão na bola dentro da área. Lantos bate o pênalti e faz 3x1. Cinco minutos depois, o Brasil diminui com Julinho. A tensão aumentava cada vez mais. Aos 26, Nilton Santos e Bozsik se desentenderam, trocaram socos e foram expulsos. Aos 34, Humberto Tozzi, em vez de acertar a bola, acertou uma voadora em Lóránt e também foi mandado embora. Os brasileiros buscavam o empate mas, com um jogador a menos, a situação se complicou. A dois minutos do fim, Kocsis marcou mais um e definiu: Hungria 4x2 Brasil.

Ao fim do jogo, Czibor estendeu a mão para cumprimentar Maurinho, mas ele tirou a mão e deixou o brasileiro no vácuo, que revidou com um soco na barriga. Mais tumulto. Pra piorar, o vestiário dos dois times era um do lado do outro. Quando os jogadores estavam saindo, o médico do Brasil tentou acertar uma garrafa de água (que, na época, era de vidro) em Puskás, que estava à beira do campo, mas errou o alvo e acabou acertando a testa do zagueiro Pinheiro. Quando ele se virou pra ver quem tinha jogado, alguém gritou: "Foi o Puskás!". Começou de vez a pancadaria. Membros da comissão técnica, até radialistas e jornalistas entraram na briga. No meio da confusão, o técnico brasileiro Zezé Moreira acertou uma chuteira (que tinha travas de madeira) no rosto do técnico húngaro. Apesar de todo esse quebra-pau, ninguém se feriu seriamente. Inclusive, não existia suspensão automática e o húngaro que foi expulso jogou normalmente a partida seguinte.

Na semifinal, mais um tabu para os húngaros derrubarem: vencer o Uruguai, atual campeão e que nunca havia perdido um jogo de Copa. Ainda sem Puskás, a Hungria continuou no mesmo ritmo: fez logo 1x0 aos 13 minutos com Czibor, e ampliou no primeiro minuto do segundo tempo com gol de Hidegkuti. Mas os uruguaios não se renderam. Juan Hohberg diminuiu aos 30 e empatou a quatro minutos do fim. Na prorrogação, os dois times partiram em busca da vitória e o jogo ficou aberto, com chances para os dois lados. Com dois gols do artilheiro Kocsis, a Hungria saiu vitoriosa com 4x2 no placar. Os 37.000 presentes no estádio La Pontaisse, em Lausanne, aplaudiram de pé o espetáculo.

O Milagre de Berna

Chegou a grande final, o dia em que a Hungria poderia se consagrar de vez como o melhor time do mundo. O adversário seria mais uma vez a Alemanha, que já havia tomado uma goleada histórica na primeira fase quando jogou com um time misto. Mas os alemães, comandados pelos irmãos Fritz e Ottmar Walter, se recuperaram e chegaram com méritos à final, ganhando a confiança da torcida ao golear a Áustria por 6x1 na semifinal.

Chovia no dia do jogo, o que os alemães consideravam um bom presságio. Diziam que Fritz Walter jogava o seu melhor futebol na chuva, o que era chamado de "Fritz Walter Wetter" (o tempo de Fritz Walter). Além do mais, jogar na chuva era mais desgastante, e os húngaros vinham de duas partidas duríssimas.

Outro ponto interessante dessa semifinal foi as chuteiras usadas pelo time alemão. Adi Dassler, fundador da Adidas, havia recentemente inventado as chuteiras de travas ajustáveis. A ideia era que as travas poderiam ser parafusadas para ficar maiores ou menores, dependendo das condições do campo. Com o tempo chuvoso, Dassler logo foi solicitado pelo técnico Sepp Herberger para aumentar as travas das chuteiras, o que daria mais aderência aos jogadores no campo molhado e que logo estaria enlamaçado no estádio Wankdorf.

Os capitães Ferenc Puskás e Fritz Walter cumprimentam-se antes do jogo (foto: FIFA.com)

Puskás finalmente retornou, mas visivelmente não estava nas suas melhores condições e jogou no sacrifício. Mesmo assim, parecia que nada ia parar os magiares. Como sempre, começaram arrasadores, marcando no início da partida. Puskás fez 1x0 aos 6 minutos e Czibor ampliou aos 8. Tudo indicava mais uma goleada e vitória fácil. Mas logo aos 10 minutos Morlock diminuiu e deu esperanças ao alemães, que pareciam incrédulos quando Rahn empatou aos 18. 2x2 no placar. O goleiro Grosics foi empurrado no lance, mas nenhum húngaro reclamou. Eles simplesmente nunca reclamavam com os juízes, porque qualquer erro sempre era compensado com os muitos gols que faziam. 

A chuva continuava caindo forte e a tensão só aumentava. Os alemães equilibraram o jogo e ameaçavam até virar o placar. A Hungria mostrava cansaço, desgaste depois do violento jogo contra o Brasil e da prorrogação contra o Uruguai. Mas por pouco não fizeram o terceiro. O zagueiro alemão cortou um chute em cima da linha quando o goleiro Turek já estava vencido. Em outro lance, Hidegkuti mandou a bola no travessão. A seis minutos do fim, a Alemanha lança a bola na área, que é cortada pela defesa. Helmut Rahn pega o rebote e chuta da entrada da área, no canto de Grosics. Os alemães viram o jogo e a torcida vai ao delírio. Puskás ainda fez o gol de empate no finalzinho, mas, em uma decisão polêmica, foi marcado impedimento. Fim de jogo, a Alemanha era campeã do mundo.

Assim chegou ao fim a sequência invicta de 31 jogos em quatro anos dos húngaros, com uma derrota no jogo mais importante de sua história. Para os alemães, foi uma vitória heróica, fantástica, inesquecível. O Milagre de Berna, como ficou conhecida essa final, virou até filme. Foi uma proeza tão grande quanto a do Uruguai quatro anos atrás. Para os húngaros, essa derrota foi o fim de uma geração de ouro. Um fim inesperado e melancólico para um dos melhores times que o mundo viu jogar. Essa Hungria poderia muito bem continuar brilhando, mas os acontecimentos que se seguiram impediram que isso acontecesse.

O fim de uma geração de ouro

Em 1956, houve uma revolução na Hungria contra o controle soviético. Quando isso aconteceu, o Honvéd estava na Espanha, jogando pela antiga Copa dos Campeões da Europa contra o Athletic Bilbao, onde foram derrotados por 3x2. Havia guerra civil em Budapeste. Milhares de tanques soviéticos invadiram a cidade, que foi bombardeada. Os jogadores decidiram não voltar para a Hungria e o jogo de volta foi realizado na Bélgica. Logo no início, o goleiro Grosics se machucou. Como substituições ainda não eram permitidas, Czibor foi jogar no gol. Em desvantagem, o Honvéd conseguiu apenas um empate em 3x3, que os eliminou da competição.

Assim, o time que era a base da seleção ficou sem rumo. Mesmo com a FIFA e o governo soviético - que deu um fim na revolução - pedindo para que retornassem, eles decidiram chamar seus familiares de Budapeste e fazer uma excursão pelo mundo para arrecadar fundos. Passaram por Itália, Espanha, Portugal e até foram ao Brasil, onde jogaram cinco partidas: derrota para o Flamengo (6x4), vitória contra o Botafogo (4x2), mais duas vitórias contra o Flamengo (6x4 e 3x2) e derrota para um combinado entre Flamengo e Botafogo (6x2).

Porém, aquele time não existia mais oficialmente. Foram banidos pela FIFA e proibidos de usarem o nome Honvéd. Depois da excursão pelo Brasil, os jogadores se separaram e cada um tomou o seu rumo. Alguns foram perdoados e resolveram voltar pra Hungria, como Grosics, Lóránt, Bozsik e Budai. Outros acabaram jogando no oeste da Europa. Em 1958, Czibor e Kocsis foram para o Barcelona. Puskás, depois de vagar pela Europa e ficar um ano sem jogar, assinou com o Real Madrid e foi uma das estrelas do time que dominou a Europa no final dos anos 50.

A decadência

De volta à Hungria, o Honvéd fez uma péssima campanha sem seus principais jogadores e só não foi rebaixado porque decidiram expandir a primeira divisão. Apenas nos anos 80 eles foram novamente campeões nacionais.

A seleção foi se enfraquecendo aos poucos e nunca mais passou das quartas de final em uma Copa do Mundo. Sua última participação foi em 1986, onde não passou da primeira fase. A última vez que participaram de uma Eurocopa foi em 1972.

Nos anos 60 os magiares ainda tiveram um certo sucesso, com dois títulos olímpicos (1964 e 1968), um 5º lugar na Copa de 1962 e um 6º lugar na Copa de 1966. Ainda surgiram grandes jogadores, como Lajos Tichy, Albert Flórián, Ferenc Bene e Janos Fárkas. Mas parou por aí.

A Hungria ainda conseguia ser competitiva até o início dos anos 90, quando o comunismo deixou de existir definitivamente. Hoje eles não têm relevância nenhuma no cenário internacional. A sua liga é fraca e tem suspeita de manipulação de resultados. O público é pouco - o atual campeão, Debreceni, teve a média de 4.700 torcedores por jogo na última temporada -, os investidores são poucos e a televisão paga pouco pra transmitir os jogos. Em 2006, o Ferencvários, clube mais popular do país, foi rebaixado por não pagar o que devia há anos. Os times estão afundados em dívidas e não conseguem fazer um trabalho decente com as categorias de base.

Só na temporada passada é que conseguiram colocar um time na fase de grupos da Liga dos Campeões depois de mais de 10 anos. Isso porque a UEFA mudou as regras para facilitar a entrada de equipes de ligas menores. Mesmo assim, o Debreceni fez uma campanha muito ruim, levando goleadas e perdendo todos os seis jogos que disputou. Na seleção também as coisas vão mal. Num amistoso disputado em junho, a Hungria perdeu da Holanda de 6x1.

O maior problema do futebol húngaro é administrativo. O que não é diferente de vários outros países, mas parece que a situação por lá é desesperadora. Muita coisa precisa ser feita. A situação não deve melhorar tão cedo, mas pode ter surgido um fio de esperança quando a Hungria conseguiu o 3º lugar no mundial sub-20 em 2009. Os jovens Krisztián Németh e Vladimir Koman, de 21 anos, são boas promessas. Quem sabe eles não façam como fez o Uruguai na Copa de 2010 e mostrem um brilho digno dos antigos tempos de glória?

Seleção Sub-20 da Hungria comemora o 3º lugar no Mundial do Egito depois de uma disputa por pênaltis.
À esquerda, com a camisa 9, Krisztián Németh. Vladimir Koman é o 7, com a braçadeira de capitão. 
Foto: Getty Images

Referências:
Balípodo 
BBC
FIFA.com
Football Memorian
IFHOF
MagyarFutball
Milano FC 
NSCAA 
Olheiros
Preleção 
UOL Esporte
Wapedia
Wikipédia 

5 comentários:

  1. Belíssima idéia de pauta cara, muito bem feita, tá de parabéns.Uma pena a seleção de 54 ter perdido para os muito dopados alemães (muitos morreram de falencia renal e hepática poucos anos depois)

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  2. Valeu! Será que estavam dopados mesmo? Tinha ouvido falar nisso, mas sem nenhum indício de que pudesse ser verdade mesmo. Mas além disso, teve o segundo gol da Alemanha que foi falta no goleiro e um gol da Hungria anulado com um impedimento duvidoso. Além do Puskás jogar machucado, os alemães usarem chuteiras especiais pra jogar na chuva e o alinhamento dos planetas que não ajudou também... Enfim, foi um pecado essa Hungria não ter sido campeã.

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  3. Uau, muito bom o texto, uma verdadeira aula! E Pfaff me lembra o Joãozinho falando da máquina de costura da vó Dona. xD

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  4. Ótimo texto!
    Também acho q a Hungria foi prejudicada no passado. É difícil encontrar provas concretas... ainda assim a FIFA não é nada certinha.
    Muita política, muitos interesses...

    Tenho uma grande simpatia pelo futebol húngaro.
    Hajrá Magyarország!
    =)

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